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O cerco ao Brasil: como os EUA reposicionam a América Latina no mapa da guerra híbrida

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Enquanto o mundo observa o Oriente Médio e o Pacífico, uma guerra invisível avança sobre o coração da América do Sul. Sob a bandeira do “combate ao narcoterrorismo”, Washington reativa a Doutrina Monroe, infiltra suas doutrinas jurídicas e militares em governos aliados e cerca o Brasil por todos os flancos — da Amazônia ao Atlântico Sul. Este artigo revela, com precisão cirúrgica, as engrenagens desse novo cerco hemisférico e os cenários que podem decidir o futuro da soberania latino-americana.

A guerra que não se vê

Há uma guerra em curso, mas ela não é declarada. Não há tanques atravessando fronteiras nem aviões riscando o céu, mas há satélites orbitando consciências, sanções que substituem bombas e narrativas que cumprem o papel das antigas frotas de invasão. É a guerra que se infiltra nas instituições, nas leis, nas telas e nos fluxos de informação. Uma guerra silenciosa e permanente, onde o inimigo é o que se opõe à ordem do império. E, nessa guerra, o Brasil ocupa o centro do tabuleiro.

A geopolítica do século XXI deixou de ser apenas disputa por território: é disputa por sentido. O domínio deixou de se manifestar apenas no chão físico e passou a operar no campo simbólico, jurídico e informacional. O novo império não precisa ocupar o território — basta controlar as narrativas que o explicam. Assim, a América Latina reaparece no radar de Washington não como espaço a conquistar, mas como fronteira cognitiva e jurídica a reocupar. É a atualização da velha Doutrina Monroe, agora digitalizada e travestida de “cooperação antinarcótica”, “proteção de infraestruturas críticas” e “defesa da democracia”.

Desde 2023, a movimentação dos Estados Unidos na região voltou a seguir o padrão histórico que sempre antecede a coerção: saturar o continente de pretextos morais, criar inimigos internos e reconfigurar leis nacionais para legitimar a interferência externa. O termo “narcoterrorismo”, ressuscitado com força em relatórios e pronunciamentos, cumpre hoje o mesmo papel que a palavra “comunismo” teve na Guerra Fria: o de pavimentar, sob aparência de justiça, o caminho para o domínio. É o novo álibi jurídico da dominação.

A diferença é que agora o campo de batalha é difuso. A ofensiva não parte apenas do Pentágono, mas também do Tesouro, das agências de segurança, das big techs e dos parlamentos aliados. A guerra híbrida opera por meio de sanções, campanhas de desinformação, lawfare e integração assimétrica das forças armadas de países periféricos às doutrinas de segurança norte-americanas. As frotas cederam lugar às listas de sanções; as bases, aos acordos de interoperabilidade; e as invasões, aos tratados de “cooperação em segurança interna”. É a guerra como norma, não como exceção.

O Brasil está cercado, não por divisões blindadas, mas por narrativas que o empurram para a defensiva. A cada novo decreto, a cada nova designação de “grupo perigoso”, a cada exercício militar no entorno, o país é lembrado de que precisa escolher um lado — e que qualquer tentativa de soberania autônoma será interpretada como ameaça. Esse cerco não é improvisado: é uma arquitetura planejada que combina as dimensões econômica, militar, informacional e psicológica. Do Caribe ao Prata, do Pacífico ao Atlântico Sul, o império traça uma linha de contenção que visa impedir o fortalecimento do Sul Global e, sobretudo, bloquear o papel estratégico do Brasil no BRICS.

Mas esta guerra, invisível aos olhos e onipresente nos efeitos, não é apenas externa. Ela também se expressa nas fissuras internas — nas elites colonizadas, na extrema-direita que atua como correia de transmissão da agenda estrangeira, e em parcelas do Congresso que tentam importar leis, vocabulários e doutrinas jurídicas desenhadas em Washington. A guerra híbrida é um sistema total, porque captura tanto os fluxos materiais quanto os imaginários. É uma guerra de ocupação mental e institucional.

O desafio, portanto, não é apenas reconhecer o cerco: é compreendê-lo em sua totalidade. O que está em jogo não é uma divergência ideológica, mas o controle sobre os meios de produção da própria realidade. É o poder de definir o que é ameaça, quem é terrorista, o que é liberdade e o que é soberania. E esse poder, quando monopolizado, é o núcleo da dominação imperial.

Este artigo revela o mapa completo dessa ofensiva — suas bases legais, seus operadores regionais, seus canais econômicos e seus objetivos geoestratégicos. A partir das evidências mais recentes, das transformações jurídicas e militares em curso e das conexões que a grande mídia ignora, o que se desenha é o cerco sistemático à América do Sul, com o Brasil no centro gravitacional da disputa. É uma guerra travada sob o disfarce da ordem, e é exatamente por isso que ela é tão perigosa. Porque quando a guerra se disfarça de paz, o inimigo não chega armado: ele chega convidado.

O eixo de sobrevivência do império

Nenhum império aceita o próprio declínio. Quando o centro do sistema começa a perder força, ele não recua — ele se reorganiza. Foi assim com Roma, foi assim com o Império Britânico, e é assim agora com os Estados Unidos. O século XXI revelou o que a retórica liberal tentava esconder: o esgotamento de uma hegemonia que depende da manutenção de uma ordem mundial subordinada ao dólar, à sua jurisdição e às suas bases. A crise não é apenas econômica, é existencial. E quando a hegemonia entra em crise, a guerra deixa de ser opção e passa a ser método de sobrevivência.

Desde a pandemia e, mais intensamente, após a guerra da Ucrânia, Washington compreendeu que já não detém o monopólio do fluxo global de mercadorias, tecnologia e informação. A China rompeu o cerco econômico; a Rússia sobreviveu às sanções; e o BRICS deixou de ser um acrônimo para se tornar um projeto político de reorganização do mundo multipolar. Esse novo arranjo — com suas contradições, mas com um horizonte de autonomia — representa, para o império, a maior ameaça desde o fim da Guerra Fria. É nesse contexto que a América Latina volta a ser tratada não como parceira, mas como reserva estratégica: um espaço a ser reocupado para compensar o avanço do Oriente.

O cálculo de Washington é frio e estrutural. Se não pode conter a Eurásia, precisa garantir o hemisfério ocidental. Se não pode controlar as rotas do Mar da China, deve controlar as do Atlântico Sul. E se não pode mais ditar o fluxo da informação, tentará dominar as infraestruturas que o sustentam: cabos submarinos, satélites, nuvens de dados, portos e sistemas financeiros. A nova Doutrina Monroe não se proclama — ela se codifica em leis, sanções, tarifas e narrativas. Ela não diz “a América é dos americanos”, mas age como se todo o continente devesse continuar orbitando o eixo de Washington.

Por isso, a retomada da ofensiva no continente não é apenas militar: é jurídico-econômica e cognitiva. A guerra híbrida substitui as invasões por decretos presidenciais e as ocupações por tratados de interoperabilidade. O objetivo não é conquistar territórios, mas garantir que nenhum país latino-americano possa formular uma política de desenvolvimento soberana fora da órbita estadunidense. O FMI, os acordos de “cooperação em segurança”, a guerra ao narcotráfico e a diplomacia das sanções são expressões distintas de uma mesma racionalidade imperial: a de impedir que o Sul Global construa seus próprios caminhos.

O império envelheceu, mas aprendeu a mascarar a decadência com a retórica da liberdade. O discurso moral é o verniz do controle. Quando fala em “democracia”, o que protege é o fluxo irrestrito de capitais; quando fala em “direitos humanos”, defende o monopólio do poder financeiro; quando fala em “segurança”, justifica o avanço de suas bases. E cada país que tenta romper esse padrão — seja pela via diplomática, tecnológica ou social — é rapidamente submetido à tríade da coerção: desestabilização midiática, punição econômica e isolamento político.

O Brasil, nesse tabuleiro, é mais do que um alvo: é o prêmio estratégico. Controlar o Brasil significa controlar a Amazônia, as águas profundas do pré-sal, as rotas bioceânicas e, sobretudo, a voz política do Sul Global. Por isso, a pressão é constante e multifacetada: tarifas, sanções, lawfare e operações psicológicas. A sobrevivência do império passa por bloquear o avanço brasileiro como potência soberana. E é exatamente esse bloqueio que começa a se materializar nas manobras legislativas da Argentina, nas parcerias militares do Paraguai, nas “operações conjuntas” na fronteira amazônica e nas campanhas de desinformação que tentam retratar o Brasil como refúgio de “narcoterroristas”.

O império sobrevive não pela força bruta, mas pela capacidade de projetar medo e dependência. Ele cria o caos e vende a estabilidade. Oferece proteção contra ameaças que ele mesmo fabrica. E assim vai reconstruindo, peça por peça, a velha arquitetura de dominação continental sob a linguagem moderna da governança e da segurança coletiva. O nome disso é reocupação estratégica. O nome disso é sobrevivência imperial.

O laboratório jurídico da guerra híbrida

O império moderno não se impõe mais por meio de tanques, mas por decretos. As novas armas não explodem: legislam. A guerra híbrida norte-americana transformou o direito em míssil de longo alcance. É por meio de ordens executivas, listas de sanções e leis de segurança transnacional que Washington reconstrói, peça por peça, o arcabouço que lhe permite intervir sem invadir. O poder de fogo se deslocou dos campos de batalha para o campo normativo — e é nessa dimensão que o cerco à América Latina se torna mais sofisticado, mais invisível e mais eficaz.

Desde o 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos vêm fundindo o direito penal com o direito de guerra, criando uma zona cinzenta em que qualquer inimigo político pode ser rotulado como ameaça à segurança nacional. A chamada “guerra ao terror” abriu o precedente para tudo: vigilância em massa, prisões sem jurisdição e intervenções humanitárias disfarçadas. Mas, a partir de 2018, e sobretudo após 2023, essa arquitetura passou por uma mutação silenciosa: o terror deu lugar ao “narcoterrorismo”. Agora, o discurso de combate ao tráfico substitui o anticomunismo da Guerra Fria e o antiterrorismo da era Bush. É o novo pretexto moral, adaptado ao continente latino-americano.

A Executive Order 14157, assinada em janeiro de 2025, é a peça-chave dessa engenharia jurídica. Ela autoriza o governo norte-americano a designar organizações criminosas estrangeiras como “entidades terroristas” (FTO/SDGT), permitindo o congelamento de ativos, a aplicação de sanções financeiras e a extraterritorialidade penal. O que antes exigia provas, agora basta convicção política. A consequência é brutal: qualquer país que mantenha relações econômicas, comerciais ou políticas com esses grupos pode ser enquadrado como........

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