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Não penso, logo existo

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16.12.2025

A célebre frase de Descartes “penso, logo existo” (cogito, ergo sum) tem sido objeto de imensa discussão na filosofia moderna e contemporânea. Trata-se de uma inferência ou de uma performance (Hintikka)? Foi uma frase central na sua filosofia ou apenas usada em contexto didático (Cassirer)? É uma ideia original ou foi antecedida por uma ideia semelhante em Santo Agostinho (Blanchet, Gilson)? É um entimema ou uma simples intuição, um argumento, uma proposição ou uma tautologia (Ayer, Beck, Stone)? Trata-se de algo indubitável ou de algo que exige prova (Kant)? Será que, afinal, Descartes duvida que existe (Sievert)? Não estando interessado na discussão filosófica, limito-me a sugerir que a ideia de Descartes ficou famosa porque resumia três ideias que vão estar presentes em toda a filosofia europeia moderna, de Espinosa a Leibniz, de Kant a Hegel, e de tal forma que se transformaram no senso comum da modernidade ocidental (tal como ela se vê a si mesma e avalia as outras modernidades). As três ideias são: a primazia da razão, a autonomia individual e a dúvida inscrita na incessante busca da verdade.

A primazia da razão é o fundamento do racionalismo moderno, o reverso da desconfiança em relação aos sentidos, que frequentemente nos conduzem a ilusões, como acontece nos sonhos (Descartes). A autonomia individual é a marca da incomensurabilidade dos seres humanos em relação a todos os outros entes, uma vez que apenas os seres humanos são entidades pensantes (res cogitans), em contraste com a natureza, que é uma extensão inerte (res extensa). A natureza, se existe, não sabe que existe. Só o ser humano sabe que ela existe ou tem a ideia de que ela existe. A dúvida é o fundamento da criatividade humana, a capacidade de questionar tudo o que nos surge como verdadeiro por meio dos sentidos. Não podemos confiar naquilo que, em algum momento, nos enganou. Descartes não é um cético, mas usa o ceticismo metodicamente para o combater. Reside aqui a busca da certeza da época moderna e o conceito de rigor que domina a ciência moderna: não se trata da verdade, mas da incessante busca da verdade.

Essas três ideias constituem os pilares sobre os quais a modernidade ocidental se assentou. A crítica a essas três ideias foi amplamente exercida, tanto no mundo intelectual ocidental quanto no mundo intelectual não ocidental. A partir das epistemologias do Sul, tal como as venho formulando, o racionalismo eurocêntrico não permite fundar, por si só, a necessidade da luta contra a dominação capitalista, colonialista e patriarcal moderna. A decisão da luta contra a dominação é tanto um exercício da razão quanto um exercício da vontade. É tanto um exercício mental quanto um exercício emocional. É um conjunto de razões, emoções, afetos e sentimentos, ao qual Orlando Fals Borda chamou sentir-pensar e que chamo de razão quente. Não se trata de apelar a qualquer irracionalismo, mas de propor um conceito mais amplo de racionalismo, que, aliás, supere o dualismo res cogitans/res extensa de Descartes, como propõe Espinosa com o seu conceito de natureza naturante (natura naturans).

Por sua vez, a autonomia individual é preciosa, mas não pode ser concebida de modo individualista. O individualismo foi fundamental para promover o triunfo da burguesia por meio do liberalismo político e da primazia da propriedade individual. Trata-se de um excepcionalismo eurocêntrico que contraria as múltiplas tradições filosóficas do mundo que concebem o ser humano como um ser-com, um projeto existencial que se constitui e se desenvolve em cooperação com outros seres humanos e não humanos. Não se trata de dissolver o indivíduo em coletivismos amorfos (as massas). Trata-se, antes, de reconhecer que o poder constituinte de novas realidades, e sobretudo das lutas contra a dominação, é sempre um projeto coletivo, no qual as contribuições individuais só adquirem potência quando agregadas a outras contribuições, compondo totalidades que transcendem a simples soma delas.

Por fim, a dúvida metódica é talvez o contributo cartesiano mais complexo. Descartes não duvida por duvidar, como seria o caso dos céticos. Duvida para atingir certezas, o que designa como ideias claras e distintas. Na Primeira Meditação, Descartes afirma que, assim como o arquiteto, o filósofo tem de escavar o terreno até atingir a pedra sólida sobre a qual assentar as fundações do seu pensamento. As areias movediças das opiniões são, assim, descartadas por meio do exercício da dúvida. A analogia do arquiteto revela a limitação fundamental cartesiana: seu monoculturalismo eurocêntrico. Afinal, a areia pode estar cheia de pepitas de ouro, e outras culturas constroem casas na areia ou casas nas árvores, sem falar nas casas flutuantes em rios e lagos. Não há ideias claras e distintas; há........

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