Sem olhos em casa
É de bom tom dizer o contrário, com valentia, em estado de patriótica cegueira. Mas é mentira. Nos últimos anos o optimismo deixou de ser uma predisposição do carácter e tornou-se uma obrigação cívica. Não se deu essa atravessadela na cidadania por arroubo das consciências, ou porque Portugal seja alguma coisa que se recomende, mas porque o professor Marcelo e o doutor António Costa puseram muita fé na técnica do esconjuro. Não contribuíram, nenhum deles, para mais riqueza, para mais saúde, para mais justiça ou para mais cultura. Mas conseguiram que uma grande parte dos portugueses esteja a ponderar se é feliz ou apenas conformado, se a pátria dos seus maiores inclui o engenheiro Sócrates e se o doutor Salazar, não passando de um incomparável corrupto, incompetente e sem cultura, um noctívago que não fez obra e delapidou tudo o que havia herdado, não tinha, apesar disso, mais gosto na opção pelas botas do que a Mariana Mortágua na escolha das sapatilhas. Podiam, os portugueses, procurar algum esclarecimento junto daquelas duas almas que os promoveram a formidáveis e decretaram Portugal como luminária da Europa. Nesse pressuposto começariam por esclarecer se Portugal é um farol dianteiro ou é um farolim de marcha atrás e, no fim, agradecer-lhes, os portugueses e a pequena história, terem rebaixado ao nível das intrigas de sopeira aquilo que deviam ser políticas, desígnios, projectos e coragem. Vale a todos que o país assim degradado e triste é uma terra de acolhimento e, em breve, serão mais numerosos e consensuais os que vêem na miséria um destino e não uma danação.
Esta é uma época de trevas sem fim à vista. Iniciou-se há mais ou menos tempo segundo a sensibilidade ao escuro de cada um; os culpáveis são conhecidos da rua, da televisão ou da história. Os que são vivos, algumas vezes com culpa e outras inocentes, caminham às apalpadelas por causa disso — o que sempre permite encher a mão com uns pedaços indevidos e apresentar como desculpa a visibilidade reduzida. Todos, incluindo o povo comum insuspeito de qualquer responsabilidade na construção do estado tenebroso, fazem o mesmo – orientam-se nas suas pequenas sombras e safam-se.
Tudo isso parece muito mau. E talvez seja. Mas não é inconcebível o contrário e que essa condição, que não é a krisis grega mas antes o emperramento português, seja indulgente e quase boa. Portugal é um país com 900 anos e parece ainda por concluir, como um edifício que levou à falência sucessivos empreiteiros. Alguns pormenores reconhecíveis no passado perderam-se por falta de manutenção – a expansão marítima, o projecto multicontinental. As pessoas vivem tranquilamente em Portugal como se fossem uma colónia de sem-abrigo no esqueleto de um prédio embargado. O seu próprio cheiro as alimenta.
Há quanto tempo vive Portugal na escuridão e na tristeza?
Desde a passada quinta-feira, quando o sol do fim de semana deu lugar às nuvens e ao arrepio. Pensam assim, por razões simples, os que aspiram à sabedoria e alguns velhos. Não lhes convém mais do que o sol de que vivia Diógenes, o único bem que Alexandre lhe podia roubar, se lhe fizesse sombra, e lhe podia dar, se fizesse o favor de se afastar para o lado. O sol de cada dia, especial, precioso porque existe e não é certo que continue a existir. Osol como representação do que é dado a cada um para se entender com a vida que vai da manhã até à noite, urgente e necessitada de atenção para ser digna e, com sorte, para ser bela. São homens que desistiram de quereres extensos – o querer enquanto impertinência do sonho – e para quem se tornou insuportável remar contra a maré dos tolos e dos parvus. Não estão necessariamente cansados, não têm medo e não odeiam. Adoptaram um estoicismo tranquilo para não se cansarem, não terem medo e não odiarem. Amam os seres humanos uma um e evitam qualquer tipo de sentimentos para com o povo em geral. Não têm ideia de que valha a pena explicarem-se muito e, com grande probabilidade, não votarão nas próximas eleições.
Não são eles os únicos que localizam na passada quinta-feira o princípio das trevas e o que delas decorre. Nestes dias sem sol, há uma numerosa legião de colunáveis que vão prescindir das transparências, conformar-se aos sunsets em recintos fechados e........
© Observador
