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TC: Um bom pedido de fiscalização, um mau acórdão

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19.05.2025

Após o Tribunal Constitucional (TC) ter proferido, em 30.01.2023, o seu segundo Acórdão sobre a lei da eutanásia e do suicídio assistido (o Acórdão nº 5/2023), escrevi um artigo intitulado “Um mau pedido de fiscalização deu origem a um mau acórdão” (aqui publicado), no qual atribuí grande parte da responsabilidade pela má qualidade do referido acórdão à má qualidade do pedido de fiscalização que foi apresentado pelo Presidente da República, quer pelas poucas normas impugnadas no mesmo, quer pela insuficiente fundamentação então aduzida.

O Acórdão proferido pelo TC no passado dia 22 de Abril, o Acórdão nº 307/2025, veio demonstrar que, afinal, mesmo perante um bom (e fundado) pedido de fiscalização, o TC, ainda assim, proferiu um mau acórdão.

A razão por que, em minha opinião, o TC proferiu um mau acórdão não tem somente natureza quantitativa, decorrente do facto de o TC apenas ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de seis normas da Lei da Morte Medicamente (Provocada e) Assistida, a Lei nº 22/2023, de 25.05, e de não ter declarado a inconstitucionalidade das restantes dezenas de normas cuja inconstitucionalidade foi fundadamente suscitada no pedido de fiscalização que lhe foi apresentado por 56 deputados do PSD, um dos pedidos que, conjuntamente com o pedido de fiscalização apresentado pela Provedora de Justiça, foi agora apreciado pelo TC.

Importa referir que, no pedido de fiscalização apresentados pelos deputados do PSD (composto por 300 páginas), foi requerida, a título principal, a declaração de inconstitucionalidade da admissibilidade da própria “morte medidamente assistida”, dada a sua desconformidade e incompatibilidade com normas e princípios constitucionais; e, a título subsidiário, a declaração de inconstitucionalidade da maior parte das normas da lei, quer as respeitantes aos requisitos legais, quer as referentes aos vários passos do procedimento instituído.

Recordo que a Lei nº 22/2023 “regula as condições especiais em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal”. Para além de despenalizar os crimes de homicídio a pedido da vítima e ajuda ao suicídio, se a conduta for realizada no cumprimento das condições estabelecidas na lei, a referida lei veio legalizar a “morte medicamente [provocada e] assistida”, instituindo o respectivo procedimento administrativo, no termo do qual se prevê a concretização da morte pedida e a final autorizada.

A razão de ser da minha opinião fortemente crítica ao último acórdão do TC tem mais natureza qualitativa e prende-se com os motivos que foram invocados para a não emissão de juízos de inconstitucionalidade, quer relativamente à questão central do acórdão, quer à maior parte das normas da lei em causa, motivos esses que nalguns casos se revelam incompreensíveis e, na maioria dos casos, claramente insuficientes para afastar os fundamentos das múltiplas inconstitucionalidades suscitadas no pedido apresentado pelos deputados do PSD.

Diga-se que esses fundamentos eram, e são, bons e válidos fundamentos. Infelizmente, assim não o entendeu a maioria dos juízes do TC. Note-se que, das 205 páginas do Acórdão, 61 páginas correspondem ao texto do acórdão propriamente dito, enquanto as restantes páginas contêm as declarações de voto emitidas por cada um dos treze juízes do TC, sendo que doze dessas declarações contêm votos de vencimento parcial, seja por se considerar que mais normas da lei deveriam ter sido declaradas inconstitucionais, seja em sentido contrário, o que revela bem a natureza controversa da matéria.

Não sendo esta a sede apropriada para me pronunciar do ponto de vista jurídico-constitucional sobre o acórdão do TC, ainda assim não posso deixar de tecer uns comentários sobre alguns pontos do acórdão que reputo de especialmente incompreensíveis e inaceitáveis (entre tantos, tantos outros).

O primeiro comentário prende-se com o entendimento que a maioria dos juízes do TC tem a respeito do âmbito de actuação e dos poderes do TC, entendimento esse revelado logo a propósito da questão principal analisada – “saber se a própria figura da morte medicamente assistida, quaisquer que sejam os termos da sua concreta regulação, é compatível com a nossa ordem constitucional” -.

Segundo o TC, “a Constituição não impõe nem proíbe categoricamente a legalização da morte assistida, confiando ao legislador uma margem de ponderação entre os valores da liberdade individual e da vida humana, nomeadamente em situações clínicas marcadas pela gravidade, irreversibilidade e sofrimento. A morte assistida, como questão de princípio, é um problema de ordem política, cabendo ao legislador, no gozo da sua legitimidade democrática, arbitrar a tensão perene entre valores constitucionais de sentido contrário neste domínio de vida caracterizado pelo dissenso persistente e razoável entre os cidadãos” (Comunicado do TC).

Para o TC, “sendo inegável que a legalização da morte medicamente assistida implica sacrifícios e comporta perigos, a ponderação abstrata entre estes e os valores que a medida promove – uma questão fraturante – excede a função de controlo judicial da constitucionalidade, inscrevendo-se na esfera própria da deliberação democrática. Há que salientar que o juiz constitucional é como que um editor das leis, não o seu autor – a responsabilidade pela substância política destas é exclusivamente do legislador”.

O meu maior problema com esta argumentação do TC não respeita tanto à afirmação de que a Constituição “não proíbe categoricamente a legalização da morte assistida”, apesar de eu (bem acompanhada por vários juízes do TC e pela maioria dos professores catedráticos de Direito Público) discordar em absoluto da mesma, desde logo, entre tantas outras razões, pelo facto de a Constituição portuguesa ser a única Constituição no mundo que proíbe categoricamente a legalização da “morte assistida”, pois é a única Constituição que proclama a inviolabilidade incondicional da vida humana, ao dispor, no nº 1 do seu art. 24º, que “A vida humana é inviolável”.

A minha maior perplexidade, e que quero manifestar nesta sede, é o TC considerar que a “morte assistida, como questão de princípio, é um problema de ordem política”; é o TC defender que cabe ao “legislador, no gozo da sua legitimidade democrática, arbitrar a tensão perene entre valores constitucionais de sentido contrário neste domínio de vida”; é o TC achar que a legalização da “morte........

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