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Nem todos os barcos chegam ao cais

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19.06.2025

«Porque aquilo que fiz com a minha única, pequena, bela vida — foi perdê-la / numa maré de vitórias.»
O Tempo é uma mãe, Ocean Vuong (Relógio d’Água)

Quase tudo na vida se decide num segundo, num improviso mais ou menos brusco do destino, que desponta sem avisos nem sinais, indomável salteador de caravanas. À sorrelfa, suspende a jornada e a parança, levando-nos mapas e planos da algibeira. Impassível, deixa-nos prostrados em estradas sinuosas e desertas, vassalos solitários entregues ao embuste e à rapina.

Talhamos o futuro com o aprumo de um escultor devotado, gestos seguros, nunca cansados, a goiva placidamente colada às mãos. E urdimos um sem-fim de narrativas com o esmero de um velho cineasta, sempre pronto a repetir, sempre pronto a renascer, porfiando até destilar o último átomo da realidade no planisfério dos sonhos e da imaginação. Examinamos cada lugar em busca do melhor ângulo, da melhor imagem, de um feixe de luz imune ao anoitecer, a câmara pousada no desvão sombrio do cenário.

Indiferente às subtilezas do pensamento e da vontade movediça, esse amanhã por que ansiamos, debruado com os dedos em janelas largas e embaciadas, nem sempre vem. Ou simplesmente demora, detido em noites brumosas, dédalos lúgubres, portas cerradas. E de nada vale procurá-lo em avenidas soalheiras, atalhos desembaraçados, ruas apinhadas de gente sem pátria nem passado. Nem sequer em portos de navios armados à espera de um meneio da Lua, para soltar amarras e zarpar. Ou no chão ladrilhado de praças históricas, centenárias, em que a fronde de álamos e castanheiros é sombra, taipa e telhado, e onde as estátuas, confidentes linguareiras, contam histórias à luz do dia e se transformam em sentinelas ao sol-pôr.

Por vezes, apenas nos resta deter a demanda e aguardar o resgate, o instante silente e indizível, que debalde tentamos agarrar, em........

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