Dizem que é uma espécie de Estado de Direito
Toda a gente sabe que o Estado de Direito é importante, nem que seja porque todas as sociedades modernas, prósperas e livres se consideram, a si próprias e às suas congéneres, Estados de Direito. No entanto, quando políticos, jornalistas e comentadores usam a expressão, fico sempre com a impressão de que a ideia subjacente e, como tal, a definição corrente ou popular do conceito, é simplesmente um Estado onde existem leis, que se rege pelas mesmas e onde estas se cumprem. Só que a existência de leis a cumprir pelos indivíduos é tão antiga como o Estado ou possivelmente mais. O Estado emerge a partir do momento em que os indivíduos com capacidade de exercer violência para macroparasitar o resto da sociedade percebem que as suas perspectivas de êxito melhoram a partir do momento em que também podem empregar essa violência para impartir justiça, isto é, fazer cumprir as leis, entre o resto dos cidadãos. Que ninguém tenha dúvidas de que na Alemanha Nazi ou na União Soviética existiam leis e um aparelho judicial para garantir que estas eram acatadas e cumpridas pela generalidade da população. Faziam mesmo muita gala nisso. E, no entanto, ninguém chamaria a nenhum desses regimes um Estado de Direito.
Deste modo, um Estado de Direito não é aquele em que existem leis e essas leis são cumpridas, mas um em que, idealmente, todas as pessoas, governantes e governados estão sujeitas às mesmas regras. E isto é um estado de coisas muito diferente, até porque, a tentação de quem detenha o poder sobre o monopólio da violência é colocar-se numa situação de privilégio, quer dizer, acima das leis, nem que seja porque isso o ajuda a manter-se nessa situação. É muito complicado para alguém que não esteja acima das leis manter indefinidamente o poder político. É também por isso que o Estado de Direito está associado a regimes onde existe regularmente a substituição pacífica daqueles que exercem o poder político. O Estado de Direito limita naturalmente a capacidade de utilizar o exercício do poder político para se perpetuar no poder.
Devo salientar a palavra “idealmente” na definição sucinta feita no parágrafo anterior. Isto porque não existe no mundo real nenhum Estado onde governantes e governados estejam sujeitos às mesmas leis e, como tal, uma definição precisa levar-nos-ia a concluir que o Estado de Direito não existe. Por exemplo, aquela parte do Direito a que chamamos Administrativo, que rege a relação entre o Estado e os indivíduos, é um edifício jurídico que se ergue baseado nessa desigualdade. É um conjunto de leis que partem explicitamente do princípio, que quando o interesse público e privado entram em conflito, o interesse público deve prevalecer. Daqui resultam uma série de procedimentos jurídicos que colocam os indivíduos numa situação de desvantagem a priori quando entram em disputa com o Estado. Num Estado de Direito puro o Direito Administrativo provavelmente não deveria existir. Só que a gestão da coisa pública no dia a dia seria impossível sem a existência desse engendro jurídico que afasta o Estado de Direito do seu ideal. Obviamente que a partir do momento em que, mais que a defesa do interesse público (um conceito muito mais ambíguo do que a leitura dos artigos do Código de Direito Administrativo dá a entender), a aplicação do Direito Administrativo serve para proteger o........
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