Ovídio e os repuxos do Paraíso
Ovídio descreve deste modo o momento em que uma mulher atinge o prazer: “Adspicies oculos tremulo fulgore micantes ut sol a liquida saepe refulget aqua.” (Os olhos de uma mulher que frui resplandecem com um brilho que tremeluz como os raios de sol reflectidos em água transparente.)
Sobre essa luminosidade opaca e líquida, assoma um queixume; a seguir, um murmúrio; e apenas depois, quase imperceptível, um gemido. A imagem daquele júbilo de êxtase representa-se sob a aparência de um reflexo sobre a superfície de uma “água líquida” (liquida aqua); um pequeno relâmpago invisível cuja repercussão bruxuleia na visão das mulheres que acolhem a volúpia. Como um súbito repuxo num jardim.
Há uma vinheta de Paul de Limbourg que prefiro a todas as (igualmente belíssimas) que se podem contemplar no Livro de Horas do Duque de Berry. Será a mais bela de todas, a mais trabalhada, a mais sumptuosa: Eva está nua, de pé, ligeiramente acima de Adão, que se encontra ajoelhado na erva. Ela estende-lhe, na mão direita, o maravilhoso fruto escarlate que colheu do ramo. O que me comove, contudo, não tem nada a ver com essa oferenda que precederá a danação sexual. O que me comove é a sua mão esquerda; a jovem nua coloca, suavemente, amorosamente, a sua mão esquerda sobre o ombro do homem também ele nu porque o ama; não sabemos se ela acaricia a base do seu pescoço para lhe confessar o seu amor; se se apoia sobre ele por pura amizade e confiança; se afaga a carne do seu ombro para que ele agora coma do fruto........
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