De Páscoas e páginas tingidas
A página é o rosto de uma folha que não deixa de ser, no final de contas, a parte terminal, delgada e plana, de uma planta, cujos lados, face e reverso, compõem aquela simetria de que o outono todos os anos despoja. É isso: um livro constitui um tipo muito singular de foliação. Na verdade, uma foliação menos sujeita às estações do que às épocas; mais subtraído à acção do sol (embora, uma vez dispostos para a leitura, frequentemente procuremos as janelas) do que à dos lugares ao longo do tempo. Talvez por isso se diga que um livro se folheia. Embora não floresça.
Os latinos chamavam pagina não à superfície de uma folha, mas à coluna de escrita que sobre ela se derrama; à altura e largura daquela mancha que, engodada, nos encanta e seduz. Quando Plínio especifica que um vinhedo tinha o formato de uma página, esse rectângulo hoje apenas nos é perceptível à custa de um esforço que diz respeito à própria ideia de escrever.
Demétrio de Kalimnos fora, na sua juventude, pescador de esponjas, a seguir comerciante, depois instrutor de jovens e, por fim, com os pulmões já exaustos de tantos mergulhos, leitor na biblioteca da ilha, cujo dono e senhor, Paterios, se reclamava discípulo dos discípulos do grande Aristóteles. A casa da biblioteca era modesta e branca, e tanto as prateleiras como os tabiques tinham sido erguidos pelos servos de Paterios. O pescador de esponjas e o seu mestre tinham-se conhecido à volta de um prato de polvo assado com salada de funcho-do-mar e azeitonas pretas. Paterios ensinou Demétrio a ler quando ele já era velho, enchendo a sua cabeça de histórias fantásticas sobre os Argonautas e os pintores de peixes........
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