O Pau e a Cenoura
A nossa pequenez perante o mundo, e a história desse mundo, aconselha a que se seja parco na afirmação de que determinado acontecimento seja um marco verdadeiramente histórico. Em boa verdade, raramente o é. Afundados numa rotina pacífica, segura e abundante — um legado Ocidental pouco apreciado —, obcecados com pormenores, casos mediáticos e fait-divers que entretêm na sua insignificância, habituamo-nos à narrativa e tendemos a aceitar o mundo dentro de uma normalidade que, por ser previsível, se torna aconchegante, desejável e protectora face ao incerto e o desconhecido. Desse modo, e talvez também porque olhos habituados ao paroquial e ao provinciano não apanham o que de relevante se passa fora da bolha histérica do dia-a-dia, a verdade é que escapou, ou continua a escapar, a importância daquilo que pode muito bem ter sido o que de mais consequente ocorreu no mundo político internacional, em particular no Ocidental, desde a queda do muro de Berlim. Refiro-me, talvez para surpresa de alguns leitores, à reeleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América. E, sim, meço as palavras, bem como me proponho a justificá-las.
Desde logo, urge compreender o mundo antes de Trump. No Ocidente vivemos nos últimos anos, em particular desde 2011, e pelos motivos que apontei numa crónica anterior (aqui), um processo que progressivamente cooptou a extrema-esquerda, e os valores que aquela então representava, para o regaço, afável, confortável, rico e opulento, dos interesses do grande capital financeiro global. As razões para tal coisa foram até relativamente simples: a extrema-esquerda, com o seu movimento Occupy Wall Street, pela primeira vez em décadas, acertava em cheio no seu alvo: de facto, após uma crise que arruinou milhões e afectou de forma terrível a qualidade de vida das classes médias — uma crise causada em larga medida pela incúria e ganância financeiras, acrescente-se —, todos vimos em directo na rádio e na TV os seus principais responsáveis safarem os escalpes por decreto e com direito a bónus anuais, tudo à custa dos contribuintes que pagaram os providenciais bailout.
Ora, a extrema-esquerda “anti-capitalista” atingiu então, precisamente por ter acertado na crítica e no alvo, um importante nervo e, ao tornar-se popular, foi também aí que se revelaram politicamente relevantes o suficiente para merecerem contrapartida, mais ou menos directa, pelo seu apaziguamento e integração no sistema, quer político — veja-se como em 16 os Clinton tiveram que roubar a nomeação a Bernie Sanders nas primárias do partido democrata, por exemplo —, quer económico. O resultado prático foi o financiamento que a última década viu, aos milhões, para as causas e associações, bem como os seus respectivos líderes, que compunham essa mesma extrema-esquerda, primeiro norte-americana, depois internacional. Desde organizações governamentais aos departamentos académicos de causas identitárias, dos activistas de rua pela igualdade racial aos movimentos eco-fascistas, ou desde as associações culturais produtoras de conteúdos que interessavam a ninguém até à multiplicação infindável de organizações não-governamentais que procuravam fazer lobby influenciando, e aliciando, o poder político, isto sem contar com os apoios gigantes a uma multiplicidade de órgãos de comunicação social, tudo somado e por todo o lado um ecossistema inspirado directamente nos valores e causas de grupos extremistas e fringe floresceu economicamente à custa de subsídios, financiamento directo e........
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