Confiança
Vivemos tempos de vertigem e imediatismo. Demitimo-nos das nossas responsabilidades e delegámos no outro a obrigação de fazer, de ser por nós. Perdemos as referências políticas, religiosas, sociais e familiares e, no meio do vazio, ficámos dependentes, cada vez mais dependentes. É uma carência de objectivos, uma paralisia de emoções, uma impossibilidade de se “ser” sem orientação.
Queremos ser orientados não porque a resposta seja essencial, mas porque continuamos infantis, inseguros e dependentes de uma mão firme. Uma mão que é ao mesmo tempo carícia e punho, promessa e prisão. É a mão que nos guia entre o controlo consentido e um vazio de referências, uma mão invisível, sem pele, uma mão que se esconde nas relações ocultas de algoritmos que nos conhecem melhor que a nossa consciência. Foucault veria nessas mãos suaves a continuação de um poder agora trasvestido de cuidado, conveniência e personalização. Essa mão é o poder que sem vigilância explícita opera nas dobras do desejo, moldando comportamentos e, sob o pretexto de múltiplas escolhas, as antecipa e guia muito antes de serem feitas.
O controlo que outrora se fazia por muros, grades e vigilância, está hoje disseminado nos nossos hábitos, “cliques” e rotinas. Não precisamos de ser vigiados, estamos voluntariamente expostos, e isso basta.
Diria Zygmunt Bauman, num mundo de liquidez, numa sociedade onde tudo “escorre”, num mundo onde perdemos as referências de relações, valores, identidades, a “mão que nos guia”, que promete estabilidade, é a mão que seguimos, não por obediência, mas por medo do vazio. Porém, ao “guiar-nos” molda-nos, torna-nos previsíveis, mensuráveis, padronizados. Em troca, entrega conforto, conveniência e recompensa rápida. É uma mão que nos guia por um mundo que julgávamos livre, um mundo onde a liberdade é apenas uma escolha entre opções pré-definidas. Sentimo-nos seguros e em troca consentimos uma vigilância que não reprime mas que induz comportamentos, discursos, verdades, um misto de desorientação adormecida e embalada. Embalada por essa “mão pós-moderna” que não impõe um caminho, mas que faz acreditar que o escolhemos sozinhos. E no fim, mesmo depois das escolhas, continuamos dependentes, amarrados ao vazio que não conseguimos preencher e nos leva a querer tudo a toda a hora e em todo o lugar. Tornamo-nos vorazes e nada nos sacia, nada é suficiente.
Este é o mundo de hoje, um mundo pós-moderno e “narcisista”. É um mundo que alimentamos pelas redes sociais e pelos média. E num mundo ávido por informação e “notícias” sem qualidade. A novidade é que nos estimula, mas é uma novidade em doses homeopáticas porque ninguém “presta atenção” por mais de um minuto. Neste misto de voracidade e vertigem, esgotados que estão os temas da religião e virtude, é preciso uma nova “Fé”, a promessa de um novo “Éden”. Surgem assim novos “evangelhos” dos quais a “Saúde” é uma da principais “boas-novas”. E quem não quer ter saúde ou viver para sempre? É à partida um tema vencedor, um tema que vicia e do qual nos tornámos dependentes. Mas é um vício que também é estimulado por “profissionais” desejosos de protagonismo, ou mais grave ainda, alimentado por uma rede de interesses que nele constrói a sua dependência.
Temas como a saúde (a par de outros) tornaram-se combustível indispensável para a “fornalha” da comunicação. A sociedade torna-se hipermedicalizada e é-lhe difícil manter uma ponderação adequada entre o que faz sentido e um desnecessário tantas vezes contraproducente. Este novo mundo necessita de um equilíbrio que é difícil de obter, mas também é uma realidade à qual a Ordem dos Médicos anquilosada nunca se conseguiu adaptar.
Os assuntos relacionados com saúde são dos conteúdos nos media mais procurados. Nos noticiários........
© Observador
