A miséria do cancelamento
A alusão categórica a uma miséria, que sobressai no título do presente artigo, não será alheia à sinonímia provocatória com o título do famoso “Misère de la Philosophie – Réponse à la Philosophie de la Misère de M. Proudhon”, de Karl Marx, publicado em 1847.
Todavia, o mote subjacente é relativamente distinto: a designada cultura do cancelamento (quase sempre reconduzida ao termo anglófono de “cancel culture”).
Em termos ainda introdutórios, a cultura do cancelamento é um movimento de base político-discursiva que se concretiza em formas múltiplas de exclusão, retirada expressa de apoio ou (em certos casos), boicote ou ostracização de alguém, por parte de outros indivíduos ou grupos, que disse ou fez algo considerado como ofensivo.
Neste contexto, a “miséria” objeto de alusão não é apenas uma alusão provocatória ao opúsculo de Marx, mas sim ao que de mais pernicioso começa por sobressair da cultura do cancelamento: ao procurar silenciar vozes divergentes e, sobretudo, impedir o contraditório, o cancelamento encontra paralelo nas práticas de exclusão típicas de sociedades totalitárias, agora adaptadas ao universo discursivo das redes sociais e do “jogo da validação instantânea”, em que o dissenso ou a tolerância são substituídos pelo valor atribuído a “likes”, “denúncias” ou, de forma mais gravosa, à própria prática do cancelamento.
Conforme procuraremos evidenciar, ao renegarem a validade de princípios ou critérios universais – alguns dos quais intimamente ligados aos alicerces do modelo democrático ocidental – os designados canceladores impõem, não uma qualquer moralidade alternativa, mas, em verdadeiro rigor, uma autêntica conformidade forçada.
É essa a essência da miséria que o cancelamento oferece e vem protagonizando, nos tempos mais recentes. Vejamos mais alguns dos seus caracteres.
A proximidade ao pensamento dialético, que inequivocamente subjaz à cultura do cancelamento, não surpreenderá a maioria dos leitores deste breve escrito, e muito menos aqueles que, por acréscimo, têm alguma familiaridade com a cultura do cancelamento.
Perspetivada a globalidade do fenómeno, poderão facilmente identificar-se os elementos da tríade do cancelamento – canceladores, cancelados e, em última instância, o próprio cancelamento.
Para compreendê-la profundamente a essência desta tríade, e a dialética inerente, justifica-se explorar algumas características centrais da cultura do cancelamento, que transcendem sua dimensão simplista de um mero conflito entre indivíduos ou grupos.
De entre essas características, gostaríamos de destacar as seguintes:
1. Relativismo axiológico
A prática do cancelamento opera com uma fluidez ética particularmente inquietante, sendo as regras de comportamento entre grupos de canceladores e cancelados........
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