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Eneida

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07.06.2025

Sentou-se à secretária, cruzou a perna, bebeu da chávena de chá ali deixada desde a véspera e assinou o seu nome numa folha de papel, logo amachucada e deitada no lixo. A enceradora a aproximar-se no corredor fê-la erguer-se de sobressalto: temia ser surpreendida pelas colegas. Durante parte do ano, chegavam ainda de noite para o turno da limpeza. Nessas madrugadas, a casa da democracia parecia-lhe um lugar ainda mais seguro. Onde o burburinho e os passos dos deputados e dos funcionários davam lugar a discursos enfáticos e ao tumulto de réplicas e remoques tocava agora, do telemóvel guardado no bolso da bata de Eneida, para lhe fazer companhia durante a limpeza dos gabinetes, uma quizomba romântica. Sobre as secretárias dos secretários, papéis confidenciais, assuntos de Estado, ao som da música, a lida sucedia em contra-relógio, e então Eneida sentia a casa um pouco sua, no modo como as suas mãos tocavam tudo aparentando não tocar em nada, as decisões à mercê do seu olhar, ainda que limpasse nada vendo, se não a hora de terminar e de se ir........

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