A vida em Janeiro
Fumo ao frio, à janela. Vejo caras no prédio em frente. As janelas do rés-do-chão são olhos. As grades da cave: dentes. Então, assusto-me. Tento fixar as janelas e vê-las enquanto janelas. Ver as janelas enquanto janelas, preciso de as fixar um momento e concentrar-me. E enfim, sim, a custo, vejo o mundo como ele é. Tenho visto tanto. Vi bolor negro na espinha de um livro com quinhentos anos e o picotado lúdico que o peixinho-de-prata deixa nas margens ao comer o papel. Um homem de robe turco branco, descalço, a correr rua fora, de noite. As mãos do dono da mercearia, com migalhas de pão. Uma travessa de empadas pequenas no restaurante. Um pintor simpático, no seu estúdio (pinta sem parar sempre a mesma mulher). Uma mulher de luvas. O casal da frente, ela negra, ele branco, enquanto envernizam três tábuas, na varanda. As unhas dos meus pés, quase recuperadas, depois de terem doentes. A voz do meu irmão, ao dizer-me que é, agora, proprietário. Os olhos da........
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