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Donald Trump e a Alma do Tirano 

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21.05.2025

As iniciativas políticas de Donald Trump neste primeiro trimestre do seu segundo mandato, entre as quais se destacam: (i) a amnistia da turba enlouquecida que tomou de assalto o Capitólio a 6 de Janeiro de 2021; (ii) a promessa de deportação em massa de 11 milhões de imigrantes indocumentados; (iii) o assédio a e a humilhação de dezenas de milhares de funcionários da administração pública norte-americana; (iv) o vexame sádico de Volodymyr Zelensky perante as câmaras de televisão de todo o mundo na Sala Oval, impondo ao Presidente ucraniano um acordo de paz negociado directamente pela Casa Branca junto do Kremlin (“Eu diria que este vai ser um grande momento de televisão…”, rejubilou então o homem de Mar-a-Lago) e, last but not least; (v) as persistentes ameaças de anexação do Panamá, da Gronelândia e do Canadá, fazem emergir um problema incontornável: como caracterizar, em termos razoavelmente científicos e já não meramente ideológicos, o modo como Donald Trump exerce o poder que os cidadãos americanos lhe confiaram nas eleições presidenciais de Novembro de 2024?

Pois bem, seja nas fileiras do comentariado que se encontra ao serviço da “bolha mediática”, seja nas tumultuárias redes sociais, sabemos da preferência, num e noutro caso, pelos termos autoritarismo, populismo, totalitarismo e fascismo para descrever os actos de governo de Trump conhecidos como «ordens executivas». Mas, designarão todos estes velhos e estafados “-ismos” a verdade efectiva do poder tal como Donald Trump o entende e pratica? Talvez aqui e ali, neste e naquele caso, eles o possam ainda fazer, seja como for sempre de um modo parcial e fragmentário, pois todos estes “-ismos” se mostram na hora presente esgotados e desactualizados e, no limite, incapazes de dar conta da complexidade de uma forma de exercício do poder que, sendo embora tão antiga quanto o próprio homem, apresenta hoje aspectos radicalmente novos para os quais as nossas democracias liberais não parecem estar preparadas neste tempo de desassossego, confusão e terror. Repetindo palavras lúcidas de George Orwell: «Eu diria mesmo que qualquer palavra terminada em “-ismo” cheira logo a propaganda».

E que forma de exercício do poder pode ser essa a que Donald Trump dá corpo e pessoa senão a tirania? Sim, a tirania. Eis um termo político “bárbaro” importado para a língua grega e adoptado pelos primeiros historiadores e filósofos gregos para com ele descreverem um fenómeno novo na Grécia Arcaica: o exercício inconstitucional e amoral do poder de um só sobre todos assente na usurpação, na arbitrariedade, na ilegalidade e na violência. Por isso, se queremos compreender a personalidade política de Trump, em vez de nos limitarmos a despejar preguiçosamente vinho novo em garrafas velhas, é efectivamente o conceito de tirania, originariamente pertencente às calendas gregas (séculos IX-VI a. C.), que hoje nos vemos forçados a retirar do baú das velharias da filosofia política para o polir e o trazer de novo à luz do dia.

Antes de passarmos à descrição propriamente dita do exercício do poder tirânico, revisitando o que deste disse Platão, vejamos primeiro, embora de modo esquemático e apenas de passagem, o emprego pouco rigoroso das noções de totalitarismo e populismo quando aplicadas, sem mais, a Donald Trump. (A análise da parca e desajustada serventia dos termos autoritarismo e fascismo terá de esperar por outra ocasião.)

Quanto à noção de totalitarismo, foi a própria Hannah Arendt, a principal divulgadora e sistematizadora deste novo “ismo” em sede de filosofia política contemporânea, que no prefácio à segunda edição (1966) de As Origens do Totalitarismo (1951) declarou que «o totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política que conhecemos, como o despotismo, a tirania e a ditadura», razão pela qual «temos todos os motivos para usar a palavra “totalitarismo” com cautela». Dito de outro modo, como com propriedade observou mais recentemente o filósofo esloveno Slavoj Žižek, «o conceito de “totalitarismo” foi e é, desde o próprio momento da sua concepção, uma noção tapa-buracos (stopgap)» que serve de conceito antitético assimétrico, isto é, desigualmente contrário, face ao conceito dominante de “liberalismo”. Quanto à plurivocidade da noção de “populismo”, que baste por ora dizer que a redução da diversidade e complexidade de experiências políticas ditas “populistas” a um denominador comum conceptualmente unívoco e coerente não é nem cientificamente correcta, nem politicamente consequente. Porque a indefinição semântica que assombra o uso hodierno do termo “populismo” funciona hoje, tanto à esquerda como à direita, como pouco mais do que um slogan, na prática como uma campainha ou alarme social para a imagem polémica, negativa ou positiva, que dele se pretende passar. Apto a receber todo e qualquer conteúdo antagonístico que preencha as exigências de sentido das diferentes lutas político-partidárias do momento, o termo pseudo-universal “populismo” apresenta-se nas nossas sociedades como um «significante vazio ou flutuante» (Ernesto........

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