Como a esquerda que venceu foi a que perdeu
A esquerda sofreu uma profunda inflexão a partir dos anos sessenta, que se foi aprofundando e alterou não apenas o sujeito político que pretendia representar, mas também os próprios fundamentos conceptuais que a sustentavam historicamente. Desde o início do século, e sobretudo entre o começo da era industrial e os anos sessenta, a esquerda, nas suas diversas vertentes, exerceu uma influência determinante na vida política, social e cultural, particularmente no Ocidente. Mesmo quando dividida entre correntes reformistas e revolucionárias, manteve, no essencial — apesar de falhas graves no plano concreto — uma ligação forte ao mundo popular, à ética da justiça social e ao ideal de emancipação dos oprimidos.
Nas últimas décadas, porém, quando a esquerda conquista espaços determinantes de influência nos meios intelectuais, nos órgãos de comunicação social, nos sectores culturais e em nichos estratégicos do poder educativo e jurídico, confronta-se com uma realidade paradoxal: a sua crescente irrelevância eleitoral e a rejeição sistemática por parte das classes populares. Ou seja, quanto mais domina simbolicamente as instituições culturais e morais da sociedade, mais se afasta do homem comum, que já não se revê nem na linguagem nem nas prioridades desta nova esquerda.
A esquerda dominante que emerge a partir dos anos sessenta e se consolida nas décadas seguintes pouco ou nada tem em comum com a tradição socialista, trabalhista ou mesmo social-democrata, que, apesar das suas falhas e ambiguidades, conservava ainda um enraizamento popular e um compromisso com a melhoria concreta das condições de vida das maiorias. Mesmo a esquerda democrática que recusou os totalitarismos do século XX mantinha uma visão ética e universalista da justiça social. A nova esquerda rompe com esse legado e substitui-o por uma lógica essencialmente simbólica, fragmentada e moralista.
Esta mutação não é apenas política. É antropológica. A nova esquerda já não se define em função da luta por condições materiais mais justas, mas sim através de identidades subjetivas, categorias morais abstractas e uma visão tecnocrática do mundo social. Despreza, quando não distorce activamente, os valores populares e os laços comunitários que sustentaram historicamente o seu campo de acção. O seu vocabulário já não é o da solidariedade ou da fraternidade, mas sim o da culpa histórica, da reparação simbólica e da engenharia comportamental.
Neste contexto, impõe-se distinguir esta nova esquerda hegemónica, identitária,........
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