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Lisboa em chamas: o preço da polarização e o desafio da coesão social

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31.10.2024

A capital portuguesa vive dias de grande tensão.

O que começou com a trágica morte de Odair Moniz na Cova da Moura rapidamente se transformou numa onda de violência que se espalhou por vários bairros da Grande Lisboa.

Entre viaturas incendiadas e confrontos com a polícia, a cidade tornou-se palco de um perigoso jogo político onde as palavras podem ser tão inflamáveis quanto cocktails molotov.

A morte de Odair Moniz, baleado por um jovem agente da PSP, desencadeou uma crise que expõe as fraturas profundas na sociedade portuguesa e coloca em xeque a capacidade de liderança política em momentos de tensão.

A comunicação inicial da PSP, vaga e defensiva, não acalmou os ânimos, alimentando a desconfiança em comunidades já marginalizadas.

A primeira comunicação da PSP sobre o incidente não foi a mais adequada e terá contribuído para agravar a situação.

A polícia insistiu que os agentes envolvidos na morte de Odair Moniz teriam sido ameaçados com uma arma branca, dando crédito exclusivamente às declarações dos agentes sem confirmação independente.

Esta abordagem parcial só serviu para exaltar os ânimos e descredibilizar as instituições, levando muitos a acreditar que "mais uma vez os factos vão ser investigados de forma parcial", abrindo caminho para afirmações populistas.

O Diretor Nacional da PSP, Luís Carrilho, posteriormente reconheceu este erro, afirmando que "ninguém está acima da lei, nem a polícia".

Esta declaração tardia, embora importante, destaca a necessidade de uma comunicação mais cuidadosa e imparcial desde o início de tais incidentes.

No domingo que antecedeu a explosão de violência nas ruas da Grande Lisboa, o primeiro-ministro Luís Montenegro proferiu um discurso no encerramento do 42º Congresso Nacional do PSD que, retrospectivamente, parece quase profético.

Enquanto a capital portuguesa se preparava para dias de grande tensão, Montenegro delineava uma visão para o futuro de Lisboa que, ironicamente, abordava muitos dos problemas que viriam à tona nos dias seguintes.

No seu discurso, Montenegro anunciou "um projeto de reabilitação da Área Metropolitana de Lisboa" com o objetivo de criar "uma grande polis com duas margens que não seja tão contrastante".

Esta proposta, que na altura poderia ter parecido apenas mais um plano de desenvolvimento urbano, ganhou uma nova dimensão à luz dos eventos subsequentes.

O primeiro-ministro falou em lançar um "grande projeto de reabilitação" da Área Metropolitana de Lisboa, propondo a criação de uma sociedade chamada Parque Humberto Delgado para "ordenar o arco ribeirinho sul" em Almada, Barreiro e Seixal. Estas áreas, coincidentemente ou não, viriam a ser palco de alguns dos confrontos mais intensos nos dias seguintes.

Montenegro também abordou questões de segurança, prometendo reforçar a "proximidade e a visibilidade das polícias na rua" e aumentar a "abrangência" dos sistemas de videovigilância.

Falou ainda em combater "sem tréguas" a criminalidade, o tráfico de droga e de seres humanos, bem como a imigração ilegal - temas que se tornariam centrais no debate público nos dias seguintes.

A ironia da situação não se limita apenas ao conteúdo do discurso, mas também ao seu timing.

Enquanto Montenegro falava em atrair investimentos para Lisboa e melhorar a qualidade de vida na capital, as tensões que levariam à explosão de violência já estavam a fermentar nos bairros periféricos.

A coincidência entre o discurso visionário de domingo e a realidade brutal que se seguiu serve como um aviso contundente da complexidade dos desafios enfrentados pela capital portuguesa.

Destaca também o fosso que muitas vezes existe entre as aspirações políticas e as realidades sociais, especialmente em comunidades marginalizadas.

Em retrospetiva, o discurso de Montenegro no congresso do PSD parece quase uma premonição involuntária dos eventos que estavam por vir.

Foi um alerta para a importância de abordar as questões de desigualdade e exclusão social de forma proativa, antes que elas explodam em violência nas ruas.

Esta justaposição entre a visão política apresentada no domingo e a realidade caótica que se seguiu nos dias subsequentes sublinha a urgência de traduzir as palavras em ações concretas.

Demonstra também a necessidade de uma compreensão mais profunda e uma abordagem mais holística dos problemas sociais e económicos que afetam as comunidades urbanas marginalizadas.

Neste cenário volátil, as declarações de líderes políticos ganharam um peso perigoso.

André Ventura, do Chega, defendeu que o agente envolvido na morte de Moniz deveria ser "condecorado, não perseguido".

Pedro Pinto, do mesmo partido, foi além, sugerindo que a polícia deveria "atirar a matar".

Tais afirmações levantam questões sérias sobre a responsabilidade dos líderes políticos em momentos de crise e os limites do discurso em democracia.

Do outro lado do espectro, o Bloco de Esquerda adotou uma postura igualmente radical, condenando veementemente a ação policial sem aguardar os resultados da investigação.

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© Expresso


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